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Mesa-Redonda da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC – em 2009.

O tema ou assunto é justamente a questão das novas biotecnologias, seu impacto na questão antropológica ao relançar a discussão sobre a natureza humana, contrapondo os bioconservadores e os transhumanistas, e as implicações éticas das bioengenharias e as biociências em seu esforço de reengenhagem do ser humano.

I – Introdução: Já faz alguns anos que venho tratando do assunto: conferências, cursos e papers. Provocado pelo convite da SBPC, resolvi publicar um novo artigo sobre o tema, focalizando dois tópicos importantes: 1º as questões éticas colocadas pela ciência e a tecnologia, onde trato do lado feio e ruim da coisa, tais como as questões da fraude, da impostura e da fabricação de dados, que colocam em xeque o valor axial da ciência e da prática científica: a verdade e a busca da verdade; e também abordo o lado bom e edificante da coisa, ao tratar da tentativa da ciência de introduzir normas e sanções (positivas e negativas) em seu próprio funcionamento, a exemplo da experimentação em animais e seres humanos, gerando uma ética interna própria: a ética do conhecimento e da pesquisa. 2º As questões filosóficas colocadas pela regulação moral do conhecimento e das tecno-ciências, pensadas não mais exclusivamente no âmbito da ética da pesquisa, como no primeiro tópico, mas de uma maneira mais ampla e no interior das chamadas éticas filosóficas, quando serão confrontadas várias éticas (a aristotélica, a utilitarista e a kantiana) e vários princípios reguladores serão examinados: custo e benefício, dever incondicional, duplo efeito, responsabilidade e precaução.
Estes são os dois tópicos do paper, que já está praticamente pronto. Aqui na mesa da SBPC, como disponho de pouco tempo, só vou focalizar o segundo tópico, e mesmo assim de um modo incompleto e parcial, visto que serei forçado a andar com passos rápidos e ser bastante seletivo na análise e discussão dos problemas. Deixarei de lado, por exemplo, três preciosos exemplos tratados por Rachels em seu excelente livro: o da criança anencéfala, o das gêmeas siamesas e o da menina vítima de paralisia cerebral, perfeitos para mostrar o conflito entre os kantianos e os utilitaristas nas questões morais. Deixarei de lado também o famoso Dilema do Trem Desgovernado, imaginado por Phillipa Foot em seu célebre paper sobre o aborto, e retomado por uma plêiade de filósofos, biólogos e psicólogos morais, tornando um topos obrigatório na literatura de língua inglesa e permitindo, mais uma vez, evidenciar as fragilidades das éticas kantiana e utilitarista. Lamento ter sacrificado os dois blocos, mas paciência. Se o fiz, foi porque tinha em mente tratar aqui em Manaus de um terceiro assunto abordado no paper, de suma importância e a meu ver mais apropriado para um congresso como o da SBPC, onde a presença da ciência é mais forte do que as outras áreas. O tema ou assunto é justamente a questão das novas biotecnologias, seu impacto na questão antropológica ao relançar a discussão sobre a natureza humana, contrapondo os bioconservadores e os transhumanistas, e as implicações éticas das bioengenharias e as biociências em seu esforço de reengenhagem do ser humano. O objetivo é problematizar o nexo entre moral e conhecimento, a partir da perspectiva da filosofia, que é a minha área. Dos filósofos que se pronunciaram sobre o assunto, levarei em conta o legado de Sócrates, Aristóteles, Hume e Kant. Primeiro Sócrates, que colocava na origem do mal a ignorância e acreditava que o conhecimento tornava os indivíduos virtuosos. Depois, Aristóteles e Kant, que acreditavam que não era necessária muita sagacidade e dispor de um conhecimento especial para um indivíduo tomar suas decisões morais: os princípios que servem de parâmetro para a tomada das decisões o indivíduo encontra dentro de si mesmo (a consciência e a lei do dever), segundo Kant, bem como no interior da comunidade moral, em especial na pólis ou na sociedade política (virtude cívica e justa medida), no caso de Aristóteles. Por fim, Hume que distingue o ser e o dever ser, e por extensão o juízo de fato e o juízo de valor, dinamitando a ponte que liga a ética e o conhecimento, por entender que ética faz juízo de valor, enquanto as ciências fazem juízos de fato. Na conclusão, depois de focalizar os problemas morais que acompanham a trajetória das biotecnologias, vou mostrar o quanto Sócrates, Aristóteles, Hume e Kant estavam equivocados, e que outros caminhos deverão ser procurados, se a filosofia quer efetivamente participar dos debates atuais acerca da ética da ciência e da pesquisa. II – Questões filosóficas colocadas pela regulação moral da ciência e da tecnologia.
O contexto das análises que vocês vão acompanhar em primeira mão são as novas biotecnologias associadas à eugenia e a diferentes programas de melhoramento (enhancement, em inglês) do ser humano – do corpo e da mente, patrocinados pela engenharia genética. Trata-se de um terreno minado, onde se misturam facilmente as promessas, fantasias de todo tipo (demonizadas e aterradoras umas; idílicas e paradisíacas outras) e poucas, mas importantes realizações bem sucedidas. O resultado, como é sabido, é um quadro maniqueísta em que se contrapõem duas correntes de pensamento e dois tipos de moral: de um lado, os transhumanistas, como Sloterdjick e Roberto Marchesini, aos quais se contrapõem os chamados bio-conservadores, como Habermas e Fukuyama; de outro, as éticas deontológicas que tomam o corpo humano como algo sacrossanto, frente às éticas utilitaristas e conseqüencialistas que tomam o corpo humano como algo operável e manipulável. Não tenho tempo para expor, ainda que de um modo resumido, o pesado contencioso filosófico que este assunto vem despertando. Vou limitar-me na seqüência a apresentar as linhas argumentativas que desenvolvi no paper, pouco no meu modo de ver, mas o suficiente para dar a vocês uma idéia dos problemas morais e das controvérsias que estão em jogo. De saída, visando limpar o terreno das confusões e dos temores, com a intenção de testar os princípios morais geralmente invocados na avaliação das implicações éticas das biotecnologias, à luz de seu impacto na questão antropológica, impacto real e também impacto virtual, ainda em estado de promessa ou mera possibilidade, fui levado a distinguir os tipos de biotecnologias e as situações ou ordens de fenômenos a que elas estão associadas. Para tanto, recorri aos norte-americanos Gray, Figueroa-Sarriera e Mentor, que distinguem quatro situações e ordens de fenômenos na questão das aplicações biotecnológicas, levando seja à intervenção em organismos e à substituição de órgãos, seja à reconfiguração e transmutação do corpo humano. 1- Tecnologias restauradoras, como no transplante de órgãos; 2 – Tecnologias normalizadoras, como nos marca-passos; 3 – Tecnologias reconfiguradoras, como no uso de anabolizantes e alucinógenos; 4 – Tecnologias melhoradoras, como na eugenia, conduzindo à seleção de indivíduos mais fortes e performáticos [Exemplos meus e taxonomias modificadas]. Sobre este ponto, cabe observar que na avaliação das implicações das quatro tecnologias deverão ser distinguidas a reversibilidade e a irreversibilidade dos efeitos nos indivíduos e na espécie, sendo a mais poderosa e perigosa as tecnologias melhoradoras. Feitas estas distinções, procurei introduzir a questão moral. Cinco princípios foram considerados: custo e benefício, dever incondicional, duplo efeito, responsabilidade e precaução. A questão moral que deveria ser respondida consistia em identificar, dentre os cinco princípios elencados, qual ou quais deles estariam mais bem aquinhoados para regular as aplicações das biotecnologias em seres humanos, permitindo uma atitude a um tempo mais equilibrada e mais condizente com o estado atual do conhecimento.
Sabemos, desde os sofistas, que os argumentos podem ser usados para lá e para cá, ficando na dependência de certos parâmetros a decisão se eles são verdadeiros ou falsos, num sentido epistêmico, ou se são certos ou errados, num sentido moral. Sobre este ponto, há dias li uma matéria sobre células-tronco na Folha de São Paulo, na seção de ciência do primeiro caderno (19/06/09), onde é relatado o feito de pesquisadores da USP que conseguiram pela primeira vez obter células adultas a partir de tubas uterinas a partir de tecidos descartados em cirurgia: assim, segundo os biólogos, sua utilização não levanta problemas éticos. Não vou discutir o fundado e o não-fundado dessa afirmação, mas trazê-la para um contexto mais amplo, tendo por pano de fundo a distinção dos quatro tipos de tecnologias dos norte-americanos. Tudo bem estimado, os problemas morais menos triviais e que despertam a atenção dos filósofos não estão nos pontos 1 e 2 da lista dos americanos, mas nos pontos 3 e 4. Isto porque, as tecnologias reconfiguradoras e melhoradoras põem em ação a potenciação e a mudança de escala e funcionamento dos órgãos e faculdades, e aqui todo o cuidado é pouco. Além de distinguir a reposição de órgãos frente à potenciação das faculdades, será preciso aquilatar se as mudanças introduzidas são irreversíveis, como as do patrimônio genético, e se a mudança de escala é quantitativa e não traz danos e inconvenientes ao corpo, como nos casos do microscópio e do telescópio, que prolongam nossos olhos e aumentam extraordinariamente nossa visão, sem causar-nos dano algum. Aparentemente este é o caso das técnicas de obtenção de célula-tronco comentada há pouco. Tal não é certamente o caso dos farmacólogos e alucinógenos, cujos efeitos potenciadores e inibidores podem ser revertidos com a suspensão do uso, mas que podem gerar efeitos indesejáveis e gerar forte dependência, ao sacrificar aquilo que nos é moralmente mais caro: nossa autonomia e liberdade. E tal não é seguramente o caso dos chips de memória ao serem introduzidos em nosso cérebro, potenciando nossas faculdades intelectuais e nos fazendo lembrar tudo, sem poder esquecer nada, cujos inconvenientes Borges mostrou no conto “Funes o memorioso”. Ante tal quadro, de muitas promessas e também de muitos riscos, riscos que muitos de nós não estamos dispostos a correr, o deontólogo kantiano não tem dúvida: apoiado no princípio do caráter sacrossanto da vida e no dever incondicional de protegê-lo em toda e qualquer circunstância, postulará a interdição dos experimentos com seres humanos que levem à transmutação da natureza humana, seja à manipulação do corpo, seja à melhoria da mente. Esta é a proposta de Jonas que, ao forçar o argumento da “Slippery Slope” [ladeira abaixo], dando-lhe na sua ética da responsabilidade a versão extremada da pedagogia do medo, não hesita em preconizar a moratória dos enhancement biotecnológicos, invocando a imago Dei e a preservação da espécie humana. Todavia, o que dizer das tecnologias reparadoras e normalizadoras, como nas cirurgias e em outras técnicas médicas com fins terapêuticos? Pode-se dizer que mesmo um kantiano ortodoxo não teria dificuldade em aceitá-las, uma vez observado o preceito maior do respeito à vida e da não-violação da dignidade da pessoa humana.
Em contrapartida, o utilitarista elevará contra a santidade da vida e a universalidade do preceito moral (dever incondicional) o princípio do custo e benefício, levando ao cálculo das conseqüências e à contabilidade dos prós e contras, e tomando como parâmetro na avaliação das ações e das decisões morais o bem do maior número e a análise in situ das situações. Esta é, por exemplo, a posição de Richard Harris, conhecido bioeticista da Universidade Manchester, que não hesita em igualar as melhorias genéticas e as técnicas educacionais, dizendo que ambas são igualmente manipulativas: convencido disso, ele propõe a liberação do uso de Ritalina, conhecida nos meios médicos e psi como droga potente para controlar as crianças hiperativas, porém que em tempos mais recentes descobriu-se uma propriedade suplementar, já do conhecimento de muita gente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Ou seja, além de coleira eficiente, a Ritalina potencia consideravelmente a concentração dos indivíduos, propiciando uma benéfica e significativa melhoria do funcionamento das faculdades intelectuais. E o argumento usado por Harris não poderia ser mais convincente: liberando seu uso para todos, terminaria por beneficiar todo mundo, em vez de proporcionar a vantagem especial para alguns poucos, como ocorre na situação do controle ou da proibição pura e simples. Já o princípio do duplo efeito municiará o moralista com um princípio mais refinado do que o custo e benefício do utilitarista, permitindo a distinção de situações em que a conseqüência da ação é visada intencionalmente, frente a outras em que a possibilidade da conseqüência negativa é antevista, fazendo parte do horizonte da ação e do cálculo das probabilidades, mas não conscientemente buscada ou intencionada. Todavia, Phillipa Foot que o invocou, fazendo um paralelismo com a moral cristã, digo a casuística dos jesuítas denunciada como frouxa e permissiva por Pascal, e o examinou na questão do aborto, simplesmente deixou-o de lado, dizendo que o princípio não fica de pé. Esta não é a opinião de Marc Hauser, que nele vê uma poderosa arma contra os utilitaristas, e também contra os kantianos, buscando seu fundamento psicológico no funcionamento da psyché humana (trata-se de um sentimento que ele assimila a uma intuição, no sentido de algo que fazemos automática e irrefletidamente), e lhe dando o status de um princípio cognitivo. Todavia, o princípio do duplo efeito, se é verdade que autoriza uma casuística e conduz a uma distinção parecida com a introduzida pelo direito ao distinguir o homicídio culposo (não-intencional) do doloso (intencional), não é ele mesmo prescritivo e não obriga ninguém: como tal, sendo um princípio cognitivo, ele é um princípio heurístico e serve para compreender as ações, mas é de todo inoperante para regrar as condutas e regular as aplicações das biotecnologias.
Por fim, partidário da análise in situ das situações morais, a exemplo do utilitarista, mas dele se afastando por unir em sua moral, como se fosse uma coisa só, o exame situacional das conseqüências dos atos, a busca da felicidade como telos e a areté dos indivíduos como disposição e fundamento da ação moral, tomando como modelo o phronimos, que busca o equilíbrio em suas ações e deliberações, por acreditar que a virtude está entre os extremos, o aristotélico proporá uma moral prudencial. Todavia, no contexto da modernidade tardia e do pensamento contemporâneo, o estudioso deverá ajustar a prudência ao cálculo das conseqüências e poderá contra o mero exame do custo e benefício instalar o princípio da precaução no núcleo duro da moral: mais soft e operante do que o princípio da responsabilidade de Jonas e o dever incondicional dos kantianos, por se abrir a uma casuística; menos permissivo e atuarial do que o exame do custo e benefício dos atos, que de saída nem moral é, como nas análises de riscos das ciências. No meu modo de ver, este seria o bom caminho (bem entendido, o caminho da ética prudencial) não apenas para a formulação das questões éticas atinentes ao complexo das tecno-ciências, mas também para o sopesamento dos problemas morais e a aquilatação das prescrições que irão incidir sobre aquele complexo, seja no processo de gestação do conhecimento, seja nas suas aplicações às coisas e aos seres humanos. E o que é importante: municiados desse princípio, estaríamos aparelhados para lidar com as tecnologias normalizadoras e reparadoras (pontos 1 e 2 da lista dos americanos), sem corrermos o risco de condenar o uso de vacina, penicilina e marca-passo, bem como para nos haver com as tecnologias reconfiguradoras e melhoradoras (pontos 3 e 4): tudo é uma questão de risco e de custo e benefício, devendo a decisão ser tomada e sua prescrição estabelecida com prudência e circunspecção. Das tecnologias reconfiguradoras muito já foi dito e escrito, a exemplo das drogas euforizantes e do uso contínuo de farmacólogos contra a depressão: além de forte dependência e lesões celulares irreversíveis (caso do Ecstasy), podem levar ao suicídio, e por isso não devem correr às soltas. Quanto às tecnologias melhoradoras, levando à eugenia e a mudanças profundas das características da espécie, elas requerem mais vigilância e controle ainda, por nos colocar diante do irreversível, ao passarem a nova informação para a descendência, que irá replicá-la indefinidamente.
Até agora, ao tratar dos princípios morais e das éticas a que estão associados, não focalizei a questão da natureza humana e o impacto da biotecnologia sobre a questão antropológica, levando ao embate dos bioconservadores e dos transhumanistas: de um lado, aqueles que acreditam que o corpo é sacrossanto e invocam a imago dei; de outro, aqueles que pensam o corpo é operável e invocam o direito de manipulá-lo. No meu modo de ver, o corpo humano não tem nada de sagrado, mas é algo plástico e modificável, e, como tal, vem sendo moldado, tecnificado e manipulado desde o paleolítico, quando as primeiras ferramentas (inclusive o próprio corpo) passaram a ser usadas. Tudo é uma questão de poder, de controle e de regulação – sobre as coisas e sobre as pessoas. É aí que entram a ciência, a técnica, a política, o direito e a ética. Quanto à ética e sua relação com as biotecnologias, deverão ser ajustados a capacidade de intervenção do ser humano, as propriedades das coisas, os ritmos e os ciclos evolutivos da natureza. Ora, é neste ajuste e calibragem que as éticas se dividem, não faltando aquelas que colocam no centro da moral o preceito de seguir a natureza, ao lado de outras que colocam no centro seguir a consciência ou mesmo a ciência. Assim, os utilitaristas se insurgirão contra os erros de fabricação da natureza, da loteria da vida e da lentidão da natura mater, levando milhões de anos o que a ciência e a técnica podem fazer em 10 anos, e com a vantagem adicional de colocarem o destino da espécie em nossas mãos, como no direito dos pais de escolher a melhor constituição de seus filhos. Os deontólogos e kantianos condenarão in limine as manipulações genéticas e invocarão o respeito à pessoa humana. Mas não é só: outros argumentos e preceitos poderão ser invocados e nos colocar em rota mais segura, sem a inconveniência da permissividade e do vale-tudo, e também sem o ônus da condenação total e da moratória absoluta. Como o phronimos de Aristóteles, o partidário da ética prudencial, ao adotar o princípio da precaução, considera que a decisão não é arbitrar entre o destino cego e o direito de escolha dos pais, como muitos acreditam, mas em ajustar – ao escolher – a condição, a perspectiva e a temporalidade dos seres humanos, as quais variam e dilatam sem cessar, aos ritmos, ciclos e determinismos da natureza. Daí a prudência do phronimos e daí a desconfiança contra a vida rápida. III – Conclusão Voltando ao nosso ponto de partida, quando situamos os pensamentos de Sócrates, Aristóteles, Hume e Kant a respeito da relação entre a moral e o conhecimento, a julgar por tudo que foi exposto e problematizado, vemos o quanto estavam eles equivocados. Ao contrário do que disse Sócrates, o conhecimento não torna os indivíduos virtuosos, nem a ignorância conduz ao mau moral. Para se convencer disso, basta lembrar o caso de Watson, biólogo genial que descobriu a estrutura do DNA (dupla hélice), revolucionando o conhecimento da biologia, mas que tinha posições políticas, morais e ideológicas tacanhas, e mesmo pré-científicas e arcaicas, tendo inclusive defendido o racismo. Quanto à falta de nexo entre ignorância e mau moral, basta considerar o caso das bestas, reduzidas à total ignorância das coisas, mas completamente incapazes de incorrer em delitos e ilícitos morais: se atacam e matam não é por problema de caráter, mas por outra coisa. Da mesma forma, porém em direção oposta, as pessoas simples, que podem ser honradas e boas, sem fazer meta-ética e ter conhecimento moral algum. Por sua vez, à diferença do que pensavam Kant e Aristóteles, o senso comum e a intuição (ou, antes, a consciência) estão longe de estar bem aparelhados para enfrentar as disputas e resolver as questões morais. Sinal disso são as controvérsias e as divisões que acompanham as discussões e deliberações de natureza ética, como as que separam os kantianos e os utilitaristas. Para resolvê-las, não basta consultar a consciência (Kant) ou a sociedade (Aristóteles), pois a consciência discrepa e os costumes variam.
Depois de Aristóteles, Hume e Kant, no ambiente da época contemporânea, com as ciências transformando-se em força social ativa e com a tecnologia colocando nas mãos dos homens um poder extraordinário – ao potenciar a ação, abrir novos espaços para o agir e gerar novas bifurcações a demandarem a deliberação moral – é uma nova relação entre ética e o conhecimento que se anuncia e se consuma. Por um lado, ao contrário do que pensava Hume, o desafio hoje é restabelecer a ponte entre o ser e o dever ser. A ponte é o valor e seu duplo na ação moral: as prescrições, franqueando a ciência e a tecnologia às regulações, como tudo o mais na vida humana. Por outro lado, ao contrário do que pensava Aristóteles e Kant, assiste-se hoje a dependência da ética com respeito a uma filosofia e a uma ciência mais e mais elaborada, exigindo a criação de Comitês de Ética com seus experts, devendo a ciência ser convocada para as predições e as análises de risco, e demandando do vulgo uma formação moral mais apurada para estar à altura dos acontecimentos e das situações, ao se deparar com as questões de eugenia, de células-tronco, de clonagens e dos transgênicos. Foi o que mostrou nossa análise das biotecnologias e seu impacto na questão antropológica. Foi pensando nessas coisas, sem poder simplesmente recorrer aos clássicos, que procurei abrir caminho entre as éticas deontológica, utilitarista e aristotélica, num esforço para tornar coerente, reunindo-as num mesmo sistema de pensamento, a moral pessoal e a moral pública. Nesse esforço ficarei na companhia dos comunitaristas e buscarei os princípios da moral pública na ética republicana, por entender que as biotecnologias, ao incidirem sobre a espécie humana, não podem ser relegadas a uma questão de preferência e ficar na alçada do indivíduo. Todavia, há o indivíduo e as preferências, e ninguém vai propor estatizar o sexo e transformar os assuntos privados em coisa pública. Além de distinguir o público do privado, articulando-os, será necessário juntar a phronesis e a ciência, a filosofia e a moral comum, bem como emparelhar a regra e o caso, o cálculo e o imperativo – coisas